top of page
Buscar

Temos que falar sobre eutanásia - 28/10/2024

deniscoitinhosilve



Denis Coitinho


O escritor e compositor Antonio Cícero, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), morreu, na manhã desta quarta-feira (23), na Suíça. Ele sofria do mal de Alzheimer e se submeteu a um procedimento de morte assistida, um tipo de eutanásia. Durante os últimos anos de sua vida, o intelectual enfrentava problemas neurológicos após um diagnóstico de Alzheimer. De acordo com o jornal O Globo, a decisão pela morte assistida foi mantida em sigilo a pedido do próprio escritor. O crítico literário e filósofo deixou uma carta explicando a decisão (G1, 23/10/24). Na parte inicial dela, Cícero diz: “Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo. Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação” (G1, 23/10/2024). E no fim, ressalta que: “Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade” (G1, 2310/2024).

Por mais que seja um assunto polêmico, creio que devemos refletir sobre ele, e isso porque a doença do Alzheimer e outras demências tem sido uma condição crescente em parcela significativa da população mundial que envelhece cada vez mais. Sobre o tema, Drauzio Varella, no jornal Zero Hora, de 20/10/2024, defende que devemos falar sobre eutanásia em casos de demência em estado avançado. Sua posição é a de que está mais do que na hora de mudar nossa legislação sobre a eutanásia, e isso porque não valeria viver muito a qualquer preço, isto é, em condições indignas, o mais apropriado seria a pessoa que voluntariamente deseja a eutanásia, que a lei a permita. Diz ele:

 

“Todos querem viver muito, mas não a qualquer preço. Você, leitora, é tão apegada a vida que lutaria para mantê-la ainda que não conseguisse sair da cama, não reconhecesse os filhos e confundisse os netos com ladrões prestes a assaltá-la? E, você, leitor, valeria a pena continuar vivo para passar o resto dos dias sem fazer ideia de quem são aqueles estranhos que trocam suas fraldas e lhe dão comida na boca? (VARELLA, 2024, p. 7).

 

O seu argumento central, de alguém que tem experiência de cinquenta anos de atividade clínica, é bom ressaltar, é a de que em casos de demências avançadas, quando a doença chega às fases finais, a morte seria a solução mais humana, sem levar em conta a carga extenuante de cuidado que é exigido dos familiares. Mas o problema é que a eutanásia é um crime no Brasil. Algum médico ou familiar que ajudasse alguém com uma doença terminal a ter a morte abreviada, mesmo considerando que esta é a vontade expressa do doente, seria condenado a pena de reclusão de dois a quatro anos, segundo nosso Código Penal (CP, Art. 122). Além do mais, esta decisão de matar por piedade ou compaixão um paciente em estado terminal, a seu pedido, para abreviar-lhe o sofrimento em razão de doença grave, como um câncer em estado terminal ou a doença de Alzheimer,  parece ser contraditória com a crença religiosa amplamente aceita na sociedade brasileira, de que a vida é um dom divino e só o Criador é que pode decidir a hora certa. Não estamos acostumados a ouvir a todo momento em situações de morte que “Deus é quem sabe a hora”?

Em que pese a questão legal e a perspectiva religiosa, quero refletir nesse ensaio sobre a moralidade da eutanásia voluntária. Iniciemos, então, entendendo melhor o que é eutanásia e os seus diversos tipos.

 

Eutanásia

Eutanásia significa etimologicamente, a “boa morte”. É um ato em que um indivíduo, em situação de sofrimento constante por uma doença incurável, escolhe cessar sua vida. A eutanásia é definida como a conduta pela qual se traz a um paciente em estado terminal, ou portador de enfermidade incurável que esteja em sofrimento constante, uma morte rápida e sem dor. Pode-se fazer uma diferenciação entre eutanásia ativa e eutanásia passiva. No primeiro tipo, há assistência ou participação de terceiro, isto é, quando uma pessoa mata intencionalmente o enfermo por meio de procedimento que force o cessar das atividades vitais do paciente. Por sua vez, a eutanásia passiva, que também é conhecida como ortotanásia (morte correta), consiste em não realizar procedimentos de ressuscitação ou de procedimentos que tenham como fim único o prolongamento da vida. Este segundo tipo é muito comum em casos de câncer em estágio avançado, e é uma prática médica comum.

A literatura que trata desse tema é ainda escassa em nosso país, uma vez que o tema é um tabu e geralmente associado ao suicídio assistido. No entanto, aqueles que advogam a favor da “boa morte”, procuram argumentar que a eutanásia não se difere significativamente da ortotanásia, ou eutanásia passiva, que nada mais é que permitir que o indivíduo em estado terminal, portador de doença incurável e que demonstre desejo conscientemente, possa passar pela experiência da morte de forma “digna e sem sofrimento desnecessário”, sem a utilização de métodos invasivos para a prolongação da vida biológica e do sofrimento humano.

Importante destacar que a definição de eutanásia e suicídio assistido varia de acordo com cada ordenamento jurídico que as legaliza. De modo geral, trata-se da abreviação da vida de um paciente que vivencia intenso sofrimento em decorrência de uma doença grave, incurável e irreversível. A diferença é que na eutanásia direta o ato de abreviar a vida é realizado por outra pessoa, geralmente um médico. Já no suicídio assistido, o ato de abreviar a vida é feito pelo próprio paciente, que ingere algum fármaco, que é prescrito por um médico. Foi este tipo de procedimento que o escritor Antonio Cícero se submeteu na Suíça.

            De posse deste esclarecimento inicial, quero agora refletir se o suicídio assistido ou mesmo a eutanásia direta é correta moralmente ou se ela é errada deste ponto vista moral, em casos de doenças terminais ou demências em estado avançado, quando o paciente expressamente manifesta sua vontade de ter sua vida abreviada. Farei isso a partir de três critérios normativos, a saber, o da dignidade humana, o da escolha individual ou autonomia e o da compaixão.

 

Moralidade do suicídio assistido

            Respeitar a dignidade humana parece ser um critério normativo-moral de grande aceitação em nosso meio, que podemos encontrar em Constituições nacionais e mesmo na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). A dignidade humana é um princípio fundamental da DUDH, que é estabelecido no primeiro artigo: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação aos outros com espírito de fraternidade” (DUDH). Se temos então o direito de viver com dignidade, será que não teríamos também o direito que morrer com dignidade? Veja que foi este o argumento central utilizado tanto por Antonio Cícero quanto por Drauzio Varella. Segundo ambos, a doença do Alzheimer em fases finais da doença implica em condições indignas, tais como não sair mais da cama, não reconhecer os entes queridos, receber comida na boca e não ter mais o controle do esfíncter, tendo que contar com o auxílio de cuidadores para trocar as fraldas, bem como não ter mais capacidade de ler, escrever e mesmo pensar coerentemente.

            O segundo critério, o de autonomia, parece central nestes casos de suicídio assistido, de forma a se respeitar a vontade do indivíduo no que concerne a hora de sua morte. É uma forma de se respeitar a liberdade e a capacidade do agente de tomar decisões, ou como direito do agente de deliberar e escolher livremente como agir. Tem-se três condições para uma ação poder ser considerada autônoma, trata-se da intencionalidade de agir, do conhecimento das circunstâncias do ato, e da não interferência. O que importa para determinar um indivíduo como autônomo, então, é sua autodeterminação para agir. Este princípio é relevante nas relações entre profissionais da saúde e pacientes, na qual a relação é dada pelo respeito do profissional à autonomia do paciente ou de seu representante, quando aquele encontra-se incapacitado. Fundamentalmente é necessária a autorização do paciente antes de ser exposto a qualquer tipo de tratamento. No caso do suicídio assistido, se respeitaria a escolha pessoal do agente, que é responsável. E veja que isso parece evitar o paternalismo, que é definido na medida em que o profissional, ao impor sua visão de autoridade, manipula e impossibilita a liberdade do paciente de expressar seus desejos, interesses, vontades, etc.

            Por fim, auxiliar a alguém a abreviar sua vida em casos de doenças em estado terminal ou doença de Alzheimer em fase avançada parece ser uma questão de compaixão com o sofrimento alheio. Como ignorar o sofrimento de alguém que tem dores constantes em fase final de um câncer, em que nem mesmos os mais fortes analgésicos opióides fazem efeito? Como ignorar o sofrimento de alguém que constantemente esquece quem são seus familiares, e onde estão as suas coisas, já não tendo mais contato com sua identidade? Acredito que casos assim exigem nossa compaixão, o que significa estar emocionalmente conectado com o sofredor, e auxiliá-lo em sua decisão de abreviar a vida. Como dito por Comte-Sponville, a compaixão é uma qualidade, é uma virtude, sendo “a simpatia na dor ou na tristeza, em outras palavras, é participar do sentimento do outros”, considerando que “todo sofrimento merece compaixão”, se contrapondo a “crueldade, dureza, frieza e indiferença” (COMTE-SPONVILLE, 1999). A compaixão, assim, é uma virtude central nestes casos que geram sofrimento aos enfermos.

Antes de terminar este ensaio, queria fazer referência ao principialismo de T. L. Beauchamp e J. F. Childress para tratar de casos como o de suicídio assistido, pois eles desenvolveram uma teoria moral que nos auxiliam a lidar com diversos casos de ética médica. Em Princípios de Ética Biomética, publicado originalmente em 1979, defendem uma teoria baseada em quatro princípios, centrais, a saber, autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. O principialismo, então, trata-se de uma teoria mista, pois os princípios da não maleficência e da justiça são deontológicos, enquanto, os princípios da beneficência e autonomia são teleológicos. Tais princípios morais que são fundamentais para a bioética têm valor prima facie, ou seja, cada um vale dependendo da situação em questão, pois todos tem igual valor sem ordem de preferência, mas podem ser sobrepostos quando houver um resultado de uma maior produção de bem.

Beauchamp e Childress observam que se os indivíduos considerados capazes possuem um direito moral e legal de recusarem tratamentos médicos considerados fúteis, ocasionando assim a sua morte, temos então boas razões para supor que estes mesmos indivíduos possuem um similar direito moral e legal de requisitar a assistência de profissionais para auxiliá-los a controlar as condições nas quais eles irão morrer, receitando aos pacientes doses letais de medicamentos ou até mesmo administrando-lhes as injeções (eutanásia). Segundo os bioeticistas, é necessária uma reforma na ética biomédica e na lei ao que se refere aos casos de solicitação de auxilio ao suicídio em virtude uma inconsistência entre: (1) os fortes direitos de autonomia, que permitem que pessoas em situações de total desesperança recusem tratamentos de modo a ocasionar suas mortes, e (2) a aparente rejeição de um direito de autonomia similar a esse, o direito de planejar a morte por um acordo mútuo entre o paciente e seu médico, em circunstâncias igualmente desalentadoras (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 251). Ao considerar, portanto, um pedido de assistência médica para ajudar a morrer a partir desta distinção entre “matar” e “deixar morrer”, os autores sustentam que “intervenções piedosas por parte de médicos não são inerentemente erradas e nem são incompatíveis com o papel de um profissional de saúde”. E para se fazer um melhor julgamento acerca da realização ou não destes dois atos é necessário que se tenha um amplo conhecimento de algumas coisas a mais sobre os casos, como por exemplo, os motivos do individuo, seus desejos reais e necessários e que seja feito um balanço das vantagens e desvantagens que consequentemente se derivarão deste ato para o paciente (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 253).

É claro que ainda há muita coisa a ser investigada sobre essa questão controversa do suicídio assistido, mas acredito que um ato que respeita a dignidade humana e a autonomia dos agentes, bem como que demonstra compaixão com que sofre, não pode ser visto como um erro moral. E isso já parece relevante para reivindicarmos a urgência na modificação da lei brasileira que criminaliza a eutanásia. Não parece razoável punir um cidadão com pena de reclusão de dois e quatro anos por um tipo de ato que pode ser visto como eticamente correto, a despeito de seu tensionamento com a perspectiva religiosa.

 

 

Referências

 

BEAUCHAMP, T. L. & CHILDRESS, J. F. Princípios de Ética Biomédica. 4. Ed. Edições Loyola, São Paulo, 2002

 

BRASIL. Código Penal. Decreto Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade Mecum.

 

COMTE-SPONVILLE, Andre. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

ONU - ORGANIZACÃO DAS NACÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 28/10/2024. 

 

PENNAFORT, Roberta. Antonio Cícero, escritor membro da ABL, morre na Suíca e deixa carta de despedida. Portal G1, 23/10/2024.

 

VARELLA, Drauzio. Além do esquecimento. Zero Hora, 20/10/2024, p. 7.

 

24 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Commenti


©2023 por Ensaios Filosóficos. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page