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Sobre o problema de trabalharmos muito pouco 18/09/2023

Andrea Faggion

Atualizado: 20 de set. de 2023

Andrea Faggion


Trabalho é um conceito notoriamente difícil de se definir, mas podemos tentar chegar a um acordo sobre algumas de suas características mais marcantes. De início, o que me parece seguro afirmar é que se trata de um tipo de atividade. Mas creio que não importe para a definição de trabalho se a atividade é remunerada ou não. Por exemplo, não soa nem um pouco estranho que eu diga que estou trabalhando neste texto ou que eu vá trabalhar em um vídeo para meu canal no YouTube, mesmo que eu não ganhe dinheiro com essas atividades. A meu ver, o que é crucial, sim, é que a atividade seja (ou, ao menos, pretenda ser) produtiva, e não destrutiva ou neutra.

Isso não quer dizer que outra pessoa precise desfrutar do valor gerado pela atividade de alguém para que essa atividade conte como trabalho. Se fosse o caso, não poderíamos dizer que um náufrago em uma ilha deserta trabalhou para construir sua cabana, ou que quem pratica agricultura de subsistência está trabalhando ao cultivar a terra. Esses exemplos mostram que uma pessoa pode trabalhar para si por necessidade. Mas seria inadequado aplicar o conceito de trabalho se o motivo da atividade fosse apenas o fato dela ser inerentemente prazerosa para quem a pratica?

Por exemplo, o trabalho em um jardim pode gerar um contentamento imediato. Não deveríamos dizer que foi trabalho perdido se as flores não desabrochassem ao seu final. Contudo, ainda que tenha valido a pena trabalhar no jardim que não floresceu, parece-me que, enquanto a atividade era desenvolvida, ela era orientada, de uma maneira essencial, por esse florescimento como seu propósito. Essa orientação a fins é o caso mesmo quando há sincronismo entre o desempenho da atividade e a geração do produto, como ocorre quando desfrutamos da melodia enquanto um músico toca seu instrumento. Assim, em suma, eu proponho que o trabalho seja entendido como uma atividade deliberadamente orientada à geração de um produto valioso.

Neste sentido amplo que sugeri, o trabalho tem um valor positivo. No entanto, o que me motiva a trabalhar neste texto é a impressão, que está longe de ser só minha, de que estamos vivendo uma relação completamente destorcida e doentia com o trabalho na sociedade moderna. E eu não acho que o nosso maior problema seja o excesso de trabalho. Na verdade, eu creio que, quando entendido da forma que propus, pode-se dizer que muitos de nós trabalhamos pouco ou, talvez, nem trabalhemos. Calma que eu vou explicar por que penso assim.

Em primeiro lugar, eu quero notar que não estou negando que a quantidade de trabalho possa ser um problema. Tem sido frequentemente notado que o tipo de trabalho que fazemos hoje alterou a nossa relação com o tempo de uma forma negativa. Antigamente, cada tarefa tinha o seu tempo em virtude de sua própria natureza. Você plantava quando era o tempo de plantar e colhia quando era o tempo de colher. Não faria sentido continuar ordenhando uma vaca, uma vez esgotada a quantidade de leite que ela tinha a produzir no dia. Enquanto isso, muitas de nossas tarefas, em uma economia moderna, podem ser realizadas a qualquer momento e até em qualquer lugar. Para piorar, também é da natureza das tarefas modernas que elas sejam infinitas. Eu posso escrever um texto como este no inverno ou no verão, em um domingo à tarde ou em uma segunda de manhã, sentada à mesa da cozinha ou no sofá da sala. Eu poderia aperfeiçoá-lo infinitamente. Além disso, depois de me dar por satisfeita com uma dada versão do texto, eu poderia começar imediatamente quantos outros eu quisesse. Ora, com tarefas deste tipo, quando, então, é natural parar de trabalhar?

Tarefas modernas não causam apenas a inexistência de um ponto natural para o fim do trabalho do dia. Elas também instigam um pensamento de eficiência constante: quanto mais eu fizer, em menos tempo, tanto melhor. Como costumam dizer, o tempo se torna um recurso a ser alocado com eficiência. Ele deixa de ser pura e simplesmente vida. Essa nova mentalidade transforma também o nosso suposto tempo livre, quando temos sempre que fazer algo "instagramável" com ele, em vez de meramente relaxarmos. Quando foi a última vez que você parou para procurar o pássaro que ouviu cantar e passou um tempo só olhando para ele? Quando foi a última vez que você reparou que um pássaro estava cantando?

Eu serei a última pessoa a negar que a transformação de nossa relação com o tempo ocasionada pelas tarefas modernas seja um problema. A obsessão pelo uso produtivo do tempo é um problema. Mas eu acho que essa constatação relativamente usual entre quem pensa sobre o assunto ainda não vai à raiz da crise do trabalho na modernidade. Eu tendo a pensar que, se fossemos verdadeiramente produtivos, seria um pouco menos grave termos essa relação com o tempo.

Até bem recentemente, eu não pensava assim. Eu costumava pensar que o grande problema com o trabalho dizia respeito ao trabalho como negócio. Negócio, em sua raiz etimológica, significa a negação do ócio. Para nós, hoje em dia, soa estranho dizer que a pessoa trabalha em seu momento de ócio, entendendo por trabalho o que sugeri acima. Mas isso é só porque associamos o ócio à inatividade. Na verdade, ócio significa, em sua origem latina, controle do próprio tempo. Até onde sei, podemos dizer que fazemos negócios quando, de alguma forma, transferimos para outra pessoa o controle do nosso tempo. É isso que me pareceu, em um primeiro momento, tão indesejável por si mesmo. Você passa a ter que trabalhar por obrigação.

Porém, agora, eu já me inclino mais a considerar que o filósofo Joseph Raz, que pensava que deveres e responsabilidades especiais, e não direitos, são o segredo para uma vida significativa, pode ter uma certa razão. Talvez, uma vida formada apenas pelo ócio, ou seja, uma vida em que estamos no controle do nosso tempo o tempo todo, seja uma vida vazia de sentido. Essa vida ociosa seria uma vida em que ninguém contaria com a nossa atividade produtiva para o que quer que seja. Enquanto isso, até Sêneca, quando fala da vida no ócio, de certa forma, se justifica pelo serviço que ele prestaria à humanidade com a sua filosofia, se não à sua comunidade com a política. Parece que o nosso auto-respeito requer que alguém, além de nós, confie no nosso trabalho para obter algum benefício. Em parte, é por isso que seria triste vivermos em uma ilha deserta. Em parte, é por isso que mais subsistiríamos do que viveríamos, se trabalhássemos só para nós mesmos.

Neste ponto das minhas reflexões sobre o assunto, eu cheguei, então, à conclusão de que o problema mais fundamental com o trabalho na modernidade não é que façamos uma quantidade excessiva de negócios; é que, para muitos de nós, é difícil ver o valor que nosso trabalho gera para quem quer que seja. Ok, eu admito que estou bem atrasada nesta conclusão. No fim das contas, pelo pouco que conheço de Karl Marx, talvez, fosse isso que ele já queria dizer. Não tenho pretensão alguma de ter descoberto uma verdade que, até então, estava oculta de todos. Pelo contrário, estou apenas formulando um entendimento que, aparentemente, eu compartilho com muita gente.

Nos negócios que fazemos na sociedade atual, o nosso foco tende a ser apenas o bem extrínseco gerado pelo nosso trabalho para nós mesmos. O trabalho gera, por exemplo, o recebimento de um salário. Este bem é extrínseco à atividade que desenvolvemos, porque exatamente o mesmo bem (a mesma quantia em dinheiro) poderia ser obtido de várias outras formas. Mas, excetuando esse bem extrínseco, que valor o nosso trabalho gera?

Por exemplo, a pessoa paga (e muito!) para comer um pedaço de carne temperado com ouro. Nesse caso, eu argumentaria que o trabalho de quem preparou e serviu tal prato consiste em ter inventado um meio de tirar dinheiro voluntariamente de um tolo que não sabia mais o que fazer com tanto dinheiro. Isso não é produzir valor, a menos que equiparemos valores a quaisquer preferências subjetivas, por mais estúpidas que elas sejam, o que me recuso terminantemente a fazer.

Naturalmente, há várias outras modalidades de trabalho sem valor. Pense no professor que, como um autômato, dá aulas sobre um certo conteúdo. A classe toda está interessada apenas em poder regurgitar esse mesmo conteúdo em uma prova. Semanas depois da prova, o conteúdo será esquecido de bom grado. O que importava era a prova e importava apenas como um meio para a obtenção de um documento atestando que um dado curso foi concluído. O atestado, por sua vez, será usado pelo aluno para conseguir um emprego em que ele, ironicamente, não empregará coisa alguma do que o curso supostamente lhe ensinou.

Ou, então, pense no pesquisador que, independentemente de suas angústias existenciais, escreve sobre o que for preciso, do jeito que for preciso, para ter seu trabalho aprovado por dois pareceristas e poder inserir essa aprovação no seu currículo lattes, acumulando os pontos de que ele precisa para prosperar em sua carreira. Na melhor das hipóteses, seu artigo será lido por meia dúzia de colegas que precisam se desincumbir da mesma tarefa. Na pior, será lido apenas pelos dois pareceristas mesmo.

Eu digo que quem vende aquela carne, quem ministra aquela disciplina e quem publica aquele artigo, no sentido em que entendo o termo, não trabalha. Se seu trabalho só produz bens extrínsecos à atividade, se não produz um valor genuíno, organicamente ligado à sua atividade, que ao menos poderia ser usufruído por alguém, eu digo que você se ocupa, mas não trabalha. De reunião em reunião, de e-mail em e-mail, de relatório em relatório, hoje em dia, uma pessoa pode passar a vida inteira muito ocupada, sem que ela tenha trabalhado um único dia.

Agora, eu não tenho uma prescrição com que concluir estas considerações. Mas tenho para mim que andaríamos uma boa parte do caminho para sairmos dessa crise se conseguíssemos eliminar a glamourização da ocupação. Sabe quando você encontra um amigo e ele logo começa a reclamar da correria? Daí você responde na mesma moeda e a conversa se torna uma competição para ver quem tem menos tempo. Nós bem sabemos que o tom queixoso desse tipo de conversa é uma farsa. Nesse tipo de diálogo, o que as pessoas estão realmente fazendo é se gabando de sua importância. Ninguém quer ser visto como alguém que tem tempo livre para não ser visto como um perdedor. Entre nós, "desocupado" é sinônimo de que mesmo?

Por isso, eu creio que as coisas poderiam começar a mudar se nós parássemos de nos gabar da nossa correria, se nós parássemos de nos rotularmos como workaholics, como se isso fosse motivo de orgulho. Com isso, viria também uma maior liberdade para, de fato, nos ocuparmos menos. A menos que nossa subsistência estivesse ameaçada, nós nos sentiríamos no direito de recursarmos tarefas nas quais não vemos significado, não apenas para podermos nos dedicar ao trabalho que acreditamos que realmente precisa ser feito, mas também porque entenderíamos que é um absurdo reduzirmos por completo o valor de uma vida ao valor do que ela pode produzir. Em suma, a minha proposta concreta é a seguinte: da próxima vez que alguém vier se gabar para você de estar ocupado, mude de assunto.


Andrea Faggion é doutora em filosofia pela Unicamp. Professora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UEL e bolsista produtividade do CNPq. Emai: andreafaggion@gmail.com.


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