Denis Coitinho
Um dos temas que mais provoca polêmica no campo da ética é sobre a moralidade do aborto e a consequente discussão sobre se ele deve criminalizado ou não. Um dos argumentos centrais para defender sua correção, é reivindicar a autonomia da mulher em relação à maternidade, argumentando em prol da liberdade reprodutiva das mulheres. Por sua vez, os que defendem que o aborto é errado, centram sua argumentação na proteção incondicional da vida humana, uma vez que o ato em tela implicaria na morte de um ser humano inocente e se sabe que é errado matar um ser humano inocente.
Sobre essa questão, queria comentar o recente voto da ministra Rosa Weber sobre a descriminalização do aborto e analisar de que forma essa questão mostra uma intrínseca relação entre a moral e o direito e possibilita uma melhor compreensão do que seria mesmo a moral.
A ministra do Supremo Tribuna Federal (STF), Rosa Weber, votou na sexta-feira, dia 22/09/2023, a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Em seu voto, afirmou que a maternidade é “escolha e não obrigação coercitiva” e que a criminalização atinge “o núcleo do direito das mulheres à liberdade, à autodeterminação, à intimidade, à liberdade reprodutiva e à sua dignidade”. Para ela, impor a obrigação de continuidade da gravidez a despeito das diversas circunstâncias especiais que vivem as mulheres, representa uma forma de “violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher” (Zero Hora, 23/09/2023, p. 9). Atualmente, o crime de aborto está previsto nos artigos 124 a 127 do Código Penal Brasileiro, estabelecendo pena de reclusão para a mulher que provoca aborto em si mesma (de 1 a 3 anos - Art. 124) e para o médico ou outra pessoa que provoca aborto (de 3 a 10 sem o consentimento da gestante – Art. 125 e de 1 a 4 anos com o seu consentimento – Art. 126).
Veja-se que esta discussão sobre a descriminalização do aborto é um caso complexo e gera uma ampla discussão na sociedade porque releva uma intrínseca relação entre moral e direito, relação esta que não é muito clara para nós enquanto coletividade. Não é atoa que o voto da ministra Weber provocou uma reação imediata nos setores mais conservadores do Congresso que se articulam para colocar em votação uma lei que impede a interrupção da gravidez e estabelece o Estatuto do Nascituro. Por este estatuto, “o nascituro goza da expectativa do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem de todos os demais direitos da personalidade” (KENNEDY, 2023).
O ponto central que quero destacar no voto em tela é a compreensão de moralidade que está subjacente. Diz a ministra em seu voto que: “O Estado não pode julgar que uma mulher falhou no agir da sua liberdade e da construção de seu ethos pessoal apenas porque sua decisão não converge com a orientação presumidamente aceita como correta pelo Estado ou pela sociedade, da perspectiva de uma moralidade” (Zero Hora, 23/09/2023, p. 9). Nesse sentido, a moralidade seria algo como um conjunto de valores éticos assumidos pelos indivíduos pessoalmente, quase no sentido de um moralismo. E, assim, o direito deveria ser independente da moralidade para garantir os direitos individuais, como o da liberdade reprodutiva. Mas será que esta concepção de moral está adequada?
Penso que para avançar no debate é relevante fazer uma distinção entre moralidade privada e pública. Se continuarmos a falar da moral como tendo uma unidade semântica, creio que vamos ficar estagnados na discussão. E para entender essa distinção que proponho, seria importante entender o fenômeno da assimetria normativa no campo ético.
É algo aparentemente comum em nossa vida social o fenômeno da assimetria normativa-moral, de forma que, irrefletidamente, censuramos menos os agentes por suas decisões e ações que irão impactar apenas na felicidade/infelicidade de sua própria vida, mas censuramos mais os agentes por suas decisões e ações que causarão dano aos outros. Por exemplo, censuramos menos um agente que é desleal a um amigo, ou que é covarde em uma dada situação que requeria coragem, ou que não tem resiliência para enfrentar as diversas pressões cotidianas do que seria o caso com um agente que assedia sexualmente colegas de trabalho ou que comete um ato racista. A censura moral no primeiro caso é mais branda, não implicando em uma condenação ao caráter moral do agente, nem gerando algum sentimento de ressentimento ou indignação, nem mesmo gerando uma mudança de disposição em relação a felicidade da pessoa. Talvez seja apenas um julgamento de que a ação ou a atitude do agente é errada. Diferentemente do segundo caso, em que a censura moral é mais forte, gerando, no mínimo, um sentimento de indignação pelo ato sexista e racista, ou, no limite, podendo gerar tanto uma condenação do caráter quanto uma mudança disposicional.
Mas o que isso parece mostrar? Penso que uma maneira de interpretar o fenômeno é reconhecer que, de forma não consciente, julgamos diferentemente os casos morais em que apenas a própria pessoa da ação é atingida, dos casos em que todos os cidadãos de uma comunidade são ou podem ser atingidos. O dano, no primeiro caso é pessoal, no outro, é coletivo. Por exemplo, não ser resiliente trará um dano apenas para a própria pessoa, diferentemente de ser racista, em que o dano atinge toda a sociedade. Se isso estiver ao menos parcialmente correto, creio que seria produtivo fazer uma distinção entre duas esferas da moralidade, a saber, a moralidade privada e a moralidade pública, o que não é o mesmo que a distinção usual entre as esferas privada e pública da vida.
A distinção já tradicional entre as esferas da vida privada e pública reivindica que os indivíduos devem ter liberdade para escolher como viver, qual religião ter, qual partido político votar e como viver moralmente a sua vida, mas devem ser obrigados a seguir as leis e as regras de justiça. Nessa distinção, a religião e a moral, por exemplo, fazem parte da vida privada dos agentes, enquanto a política e o direito fazem parte de sua vida pública. Essa distinção é muito comum em modelos liberais de justiça. A distinção que estou propondo é um pouco diferente. Ao invés de pensar na moral como um todo em oposição à política e ao direito, separo duas partes da moral, uma privada, que terá relação direta com a escolha do agente em agir/ser de uma certa forma, e outra pública, que estará mais conectada com a política e o direito, sendo um tipo de obrigação moral perfeita, podendo ser entendida como padrões morais minimamente aceitáveis que definem a decência humana e encorajam a vida social (HAMPSHIRE, 1978, p. 23-53). Mas, vejamos isso detalhadamente.
Na esfera da moralidade privada, a autoridade normativa é em primeira pessoa, de forma que necessita da disposição do agente para querer ser uma pessoa melhor. Nessa dimensão, ele não é obrigado pela lei e nem pelas convenções sociais. Por exemplo, doar para o Médicos sem Fronteiras ou para a Cruz Vermelha é um ato correto e que é geralmente elogiado pelas pessoas, uma vez que isso revela solidariedade com os mais vulneráveis no mundo. Não há uma lei que obrigue atos de solidariedade, e nem há uma convenção social de que devemos obrigatoriamente ajudar os mais vulneráveis. Isto será uma decisão do sujeito. Por isso, não doar não é um motivo para censura, ou, no limite, seria motivo apenas para uma censura branda. Veja-se que aqui não há uma dimensão dos direitos que serviria de base para o dever moral. Por exemplo, os habitantes de países pobres que geralmente recebem ajuda humanitária não têm direito de exigir essa ajuda dos cidadãos ao redor do mundo.
Veja-se que nessa dimensão privada da moralidade não se fere nenhum direito que seja integralmente reconhecido pela comunidade política e, por isso, não implica em nenhuma punição porque não desrespeita nenhuma lei. Não é um caso para punição a não doação para o Médico sem Fronteiras ou Cruz Vermelha. Seria o mesmo em situações como mentir, ser desleal ou trair. São atos claramente reconhecidos como errados, mas não são passíveis de punição, que é um tipo de censura, a saber, censura legal. Assim, é importante notar que nessa esfera privada da moral o nível de censura é mais brando do que na esfera pública da moral ou até é inexistente, podendo-se aceitar mais facilmente o desacordo moral, isto é, nossa discordância a respeito do certo e errado.
Por sua vez, na esfera da moralidade pública, ao contrário, a autoridade normativa é em segunda pessoa, de forma que há uma exigência social para um certo tipo de comportamento. Para falar nos termos de Darwall, teríamos aqui uma “obrigação bipolar” (DARWALL, 2013, p. 20), isto é, uma obrigação intersubjetiva entre os cidadãos de uma dada comunidade. Nessa dimensão, o agente é obrigado não por sua consciência, mas tanto pelas leis quanto pelas convenções sociais. Por exemplo, torturar pessoas, ou mais especificamente, torturar soldados em uma guerra é um ato errado, e isso porque está em desacordo com as convenções sociais e políticas, bem como está em desacordo com a lei. Torturar pessoas é um ato ilegal que é passível de punição. Veja-se que aqui há uma dimensão dos direitos, que será uma das bases do dever moral de não torturar. Por exemplo, há leis nacionais (Contituições) que condenam a tortura, bem como há leis internacionais, como a Declaração Universal do Direitos Humanos, que condenam a tortura e, mais, tomam isso como um critério para justificar até mesmo uma intervenção em um dado país. Importante chamar atenção de que aquele que seria torturado tem um direito tanto à sua integridade como à sua vida, e isso assegurado pelo conjunto legal já referido. Nessa dimensão, há uma clara correlação entre razões morais e razões político-jurídicas.
Note-se que nessa dimensão pública da moral, a censura é mais forte, uma vez que o ato errado irá contra um direito reconhecido publicamente e, em muitas situações, este ato errado será equivalente a uma ação ilícita que é passível de punição, o que nada mais é do que um tipo específico de censura, isto é, uma censura feita por uma autoridade estatal com a intenção de reprovar o ato ilícito e retribuir de alguma maneira o dano causado. A moralidade pública, assim, pode ser vista como a moralidade comum, consistindo nas mais amplas convicções morais compartilhadas pelo grupo. Por exemplo, parece fazer parte da moralidade comum atualmente a crença de que a tortura é errada, de que a escravidão é injusta, de que a discriminação, seja por raça, gênero ou classe, deve ser condenada, entre outras. Dessa forma, o nível de censura é mais forte nesta esfera pública da moral e se espera mais fortemente o consenso normativo. Talvez isso explique, ao menos parcialmente, o porque o desacordo ético não é tão pacífico aqui como é na esfera privada da ética.
Com essa distinção em mãos, voltemos à discussão sobre a moralidade do aborto. Mesmo o aborto sendo criminalizado no Brasil, ele não parece ser motivo para uma censura moral intensa, diferentemente do infanticídio, que é amplamente censurado por todos, o que parece revelar uma assimetria normativa. No primeiro caso, esta decisão parece estar no âmbito do poder discricionário de cada uma, podendo ser aceitável em razão das difíceis circunstâncias existentes. No segundo caso, a cesura moral é mais intensa por parte da comunidade, pois matar um ser humano inocente é algo sabidamente errado. Penso que essa assimetria normativa nos auxilia a compreender que a questão da correção ou erro do aborto seria melhor classificada como no âmbito da moralidade privada, esfera em que os desacordos éticos são mais comuns, enquanto o caso do erro do infanticídio seria melhor enquadrado no campo da moralidade púbica, esfera em que o consenso moral é evidente.
E com essa distinção feita, penso que uma estratégia interessante para tratar do difícil problema da (des)criminalização aborto, seria identificar apenas a moralidade pública para orientação do direito, resguardando a moralidade privada para a escolha puramente pessoal, e isso porque os desacordos éticos razoáveis em sociedades democráticas são bastante comuns. E, assim, poderíamos apoiar a descriminalização do aborto até a 12ª semana argumentando que como discordamos razoavelmente sobre o tema, e o ato não é passível de forte censura moral, cada indivíduo poderia escolher a partir de suas convicções mais profundas, tomadas como obrigações morais imperfeitas, apostando em um tipo de discricionariedade moral. Dessa forma, não seria necessário reivindicar a separação entre direito e moral, até porque a moral que teria relação com o direito estaria restrita aos valores éticos compartilhados por todos. E isso claramente não seria redutível ao moralismo.
Referências
DARWALL, Stephen. Morality, Authority, and Law: Essays in second-personal ethics I. Oxford: Oxford University Press, 2013.
HAMPSHIRE, Stuart. Public and Private Morality. In: HAMPSHIRE, S. (Ed.). Public and Private Morality. New York: Cambridge University Press, 1978.
KENNEDY, Roseann. Aborto: Conservadores reagem ao STF e querem votar o estatuto do nascituro na câmera. O Estado de São Paulo, 22/09/2023.
ZERO HORA. Rosa vota para descriminalizar o aborto. Zero Hora, 23/09/2023.
Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Pesquisador do CNPq.
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