Denis Coitinho
Um caso veio à público recentemente que creio possa nos ajudar a entender melhor tudo que está envolvido no fenômeno da responsabilidade moral, isto é, nas práticas de censura ou elogio que fazemos aos outros ou a nós mesmo em razão de uma ação ou atitude errada cometida. É o caso Antony. O atacante Antony, do Manchester United, foi cortado da seleção brasileira, nesta segunda-feira, dia 04 de setembro, e não disputará as partidas contra Bolívia e Peru, pelas eliminatórias sul-americanas da copa do mundo 2026. O corte feito pela CBF se deu horas depois das acusações de agressão feita pela ex-namorada do atleta, a influenciadora digital e DJ Gabriela Cavallin, voltarem às manchetes por conta de uma reportagem detalhada pelo portal UOL, que apresentou áudios e imagens inéditas sobre o caso. O que gostaria de problematizar é que embora adequado, parece insuficiente apenas censurar o agente por um ato errado cometido, como a violência contra a mulher, responsabilizando-o individualmente, mas não censurar igualmente a sociedade como um todo que naturaliza o sexismo e a violência de gênero, especialmente no meio esportivo, como torcidas, dirigentes de clubes, comentadores e jornalistas esportivos, entre outros, uma vez que é este meio que forma a mentalidade dos jogadores e cidadãos em geral. Precisamos falar sobre a responsabilidade coletiva, isto é, sobre a nossa responsabilidade moral compartilhada enquanto sociedade para combater o machismo e os estereótipos de gênero e se contrapor a toda violência que atinge as pessoas mais vulneráveis. Mas, antes, vejamos o caso em maior detalhe.
O jogador Antony, do Manchester United, foi desconvocado da seleção brasileira na segunda-feira, dia 04 de setembro de 2023, em razão da repercussão da matéria publicada no UOL sobre a denúncia de violência feita pela ex-namorada do atleta, a DJ e influenciadora digital Gabriela Cavallin. No dia em tela, a CBF divulgou a seguinte nota: “Em função dos fatos que vieram a público nesta segunda-feira (04/09), envolvendo o atacante Antony, do Manchester United, e que precisam ser apurados, a fim de preservar a suposta vítima, o jogador, a seleção brasileira e a CBF, a entidade informa que o atleta está desconvocado”. Antony é acusado por sua ex-namorada de violência doméstica, lesão corporal e ameaça. O portal UOL postou imagens do jogador com Gabriela, nas quais ele faz ameaças sérias à DJ. Além do mais vazaram imagens da Gabriela com machucados na cabeça e nos dedos. Ela afirma que algumas agressões foram motivadas por ciúmes, mesmo que eles tivessem separados na época. Além de denunciar Antony na justiça brasileira, fazendo boletim de ocorrência na polícia de São Paulo em 5 de junho, Gabriela também apresentou denúncia na Inglaterra em 01 de setembro deste ano. O jogador alega que a relação com Gabriela era tumultuada, com ofensas verbais de ambos os lados, mas que nunca teria agredido a namorada.
Importante esclarecer que não se trata de uma condenação prévia, uma vez que o caso será julgado pelo poder competente, podendo o jogador apresentar o contraditório. O que me interessa é procurar compreender, através do ocorrido, o complexo fenômeno da responsabilidade moral. De forma geral, se pensa a responsabilidade moral a partir das práticas de elogio e censura, e centrada no critério mérito e demérito. Por exemplo, um agente que agiu erradamente merece ser censurado e talvez punido apenas porque ele agiu por razões moralmente erradas ou expressando uma má qualidade da vontade. Por sua vez, quem agiu corretamente merece crédito ou elogio e talvez uma recompensa porque agiu por razões moralmente corretas ou expressando uma boa vontade. Por exemplo, um certo homem estupra uma mulher nos dias atuais. Ele mereceria censura, o que equivale a uma reprovação da ação, além de punição, porque compreendemos que ele agiu erradamente ao não reconhecer o fato de que as mulheres são livres e devem ser respeitadas em sua autonomia e dignidade. Em cenário similar, um outro homem seria merecedor de elogio ou crédito por proteger uma mulher de uma tentativa de estupro, e isso porque compreendemos que ele agiu corretamente por reconhecer os direitos das mulheres e identificar que o estupro é um erro moral. Veja-se que nos cenários descritos, a censura ou elogio recai sob uma ação passada, de um indivíduo particular, por sua decisão em fazer um certo ato que não estava determinado, isto é, por sua decisão/ação livre e racional. O limite desta concepção é que ela não reconhece a influência das diversas circunstâncias, tais como a histórica, a social, a política, a econômica e a psicológica, que orientam a decisão/ação, tendo uma atenção predominante na culpa do agente no passado (ver NELKIN e PEREBOOM, The Handbook of Moral Responsibility. Oxford University Press, 2022, p. xviii).
Uma outra maneira de compreender a reponsabilidade moral que parece mais promissora é olhar para frente, de forma que a censura ou elogio moral teriam por foco os bons resultados, tais como a formação moral do agente, a correção do caráter, a proteção ao dano e a reconciliação nas relações (NELKIN; PEREBOOM, 2022, p. xviii). Com essa forma de ver a responsabilidade moral, se pode facilmente reconhecer a importante influência das circunstâncias externas que circunscrevem a decisão/ação dos agentes, o que levaria a uma responsabilização coletiva antes que individual, tendo por foco o futuro. Por exemplo, um dono de escravos na antiguidade não é um alvo tão apropriado de censura quanto um empresário que atualmente faz uso de trabalho análogo à escravidão. Antes que uma questão de culpa individual, temos uma injustiça que é estrutural por naturalizar e justificar a instituição da escravidão.
Sobre esse tema, Hannah Arendt, por exemplo, faz uma importante distinção entre culpa e responsabilidade, de forma a localizar a responsabilidade coletiva na dimensão especificamente política, antes que moral ou legal, que seria a dimensão da culpa individual dos agentes, estabelecendo duas importantes condições para este tipo de responsabilidade. Diz ela em Responsabilidade e Julgamento, “(...) devo ser considerado responsável por algo que não fiz, e a razão para minha responsabilidade deve ser o fato de eu pertencer a um grupo (um coletivo), o que nenhum ato voluntário meu pode dissolver” (Companhia das Letras, 2004, p. 216). Outra importante referência sobre a responsabilidade coletiva é encontrada em Michael Sandel que, em Justiça: O que é fazer a coisa certa, diz que ela seria uma obrigação moral de corrigir os erros do passado por pertencermos a uma mesma comunidade com certas identidades históricas (Civilização Brasileira, 2012, p. 212). Veja-se que a responsabilidade coletiva, assim, seria vista como um obrigação moral-política que nós teríamos como cidadãos de uma mesma sociedade, com foco no futuro, de corrigir certos erros cometido por gerações passadas. No nosso caso em tela, seria a nossa responsabilidade enquanto sociedade de combater o machismo e os estereótipos de gênero, estabelecendo um compromisso com a superação dessas injustiças estruturais.
Com isso em mente, penso que é possível reconhecer a insuficiência de se censurar apenas um agente que supostamente agiu violentamente, sendo covarde ao agredir uma mulher. E isso porque as suas ações parecem terem alguma relação com o machismo estrutural que é característico do meio futebolístico. É claro que em se confirmando a denúncia, Antony seria corretamente censurado e passível de punição, uma vez que ele seria culpado do ato de violência cometido contra a ex-namorada, uma vez que supomos que sua ação teria sido decidida/realizada de forma racional e livre. Mas, e quanto ao comportamento da imprensa esportiva que geralmente acoberta casos como estes? Não seria ela mesma censurável por não questionar ou problematizar os casos de denúncias de violência contra a mulher ou mesmo de denúncias de estupro? Alguns exemplos nesse sentido são paradigmáticos, como os casos Robinho e Daniel Alves. Robinho foi condenado em última instância, em janeiro de 2022, a nove anos de prisão por estupro coletivo que ocorreu em 2013, na boate Sio Café, em Milão (Itália), mas ele está em liberdade no Brasil. Como o Brasil não extradita cidadãos nacionais, a Justiça italiana pediu homologação de sua decisão, para que ele cumpra pena no Brasil. Em fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal concordou com a transferência da pena. Cabe agora ao Superior Tribunal de Justiça analisar a sentença italiana, avaliando apenas se a decisão atende os requisitos para ser cumprida no Brasil. Mas, importante notar que este não é um tema de discussão da imprensa esportiva ou mesmo das torcidas de futebol em geral. Similarmente não é um tema para debate o caso Daniel Alves, que está preso na Espanha preventivamente. Ele está respondendo a um processo de estupro, sendo que a denúncia da vítima já foi formalmente aceita pelo sistema judiciário espanhol. O processo por “agressão sexual com acesso carnal” conclui que existem provas suficientes para levar o atleta a julgamento por ter estuprado uma jovem na boate Sutton, em Barcelona, no dia 30 de dezembro de 2022.
Citei esses dois casos para exemplificar um certo padrão de naturalização da violência contra as mulheres por parte da imprensa esportiva e torcedores em geral. Também poderia lembrar que em razão das denúncias feitas por Gabriela Cavallin à polícia, o jogador Antony nem devia ter sido convocado pela CBF para jogar pela seleção brasileira, até que se apurasse estas denúncias de violência doméstica e ameaças. Mas a decisão só veio mais tarde em razão da forte pressão social que ocorreu após a publicação da matéria da UOL. E nesse contexto do caso Antony, ainda lembro de um importante comentarista esportivo defender expressamente que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Mas e se casos de estupro e violência doméstica contra as mulheres são naturalizados pelo meio esportivo, como responsabilizar apenas o jogador em questão que agiu erradamente e isto não constituir uma injustiça? Não foi ele formado por este meio? É claro que não estou dizendo que se forem condenados judicialmente eles não devem ser punidos pelo crime cometido, não sendo culpados pelo erro cometido. Isso claramente é requerido pela justiça que é tomada como um parâmetro normativo essencial para sociedades democráticas. Meu ponto é outro. Creio que seria mais eficiente enfrentarmos o problema coletivamente, censurando, também, os que estão se omitindo de combater o sexismo e o machismo no meio futebolístico, que sabidamente é um meio um tanto tóxico, pois, para além dos casos de machismo, temos vários casos de racismo que também são naturalizados.
Creio que se estendermos a censura para além dos indivíduos culpados, responsabilizando a sociedade como um todo e o meio esportivo particularmente pelos erros em questão, poderíamos alcançar algo como um progresso moral, de forma a conseguir uma correção nas distorções de nosso raciocínio moral. Isto poderia ser visto como um avanço ético, pois seria uma forma de se identificar que é arbitrário não defender igualmente os direitos de homens e mulheres, estabelecendo uma preferência injustificada para os homens. Seria uma forma de alcançar um avanço em nossos raciocínios morais, que parecem exigir coerência.
Uma última palavra sobre este ponto. A característica básica do raciocínio moral é exigir a coerência normativa em casos similares, exigindo que se trate igualmente os casos iguais. É um raciocínio que expõe as inconsistências entre os juízos morais e os casos concretos. Por exemplo, o agente acha errado o racismo e o sexismo, e isso porque ele é injustamente discriminatório com os negros e com as mulheres, dado o seu comprometimento com a igualdade de direitos das pessoas. Concomitantemente, acha a homossexualidade errada, e isso é base para a sua reprovação ao casamento gay. Ao entrar numa discussão sobre os direitos dos homossexuais, alguém poderia apontar para uma inconsistência no seu pensamento. Dado o seu comprometimento com a igualdade de direitos das pessoas, parece que a reprovação ao casamento gay seria arbitrária, uma vez que os homossexuais são pessoas e deveriam ter o mesmo direito ao casamento que os heterossexuais. Assim, percebida a inconsistência, o agente deveria modificar a sua crença inicial de que “o casamento gay é errado”. A ideia geral é que esse raciocínio conduz a ajustes progressivos entre as intuições morais que temos em casos concretos, funcionando para resolver o conflito prático entre nossos juízos morais. Uma ilustração dessa perspectiva progressiva do raciocínio moral pode ser identificada no reconhecimento de que a demanda social planetária por equidade e justiça nos últimos 60 anos tem auxiliado a modificar as intuições éticas globais sobre o estatuto moral das mulheres e dos negros, bem como de outros grupos marginalizados, como o da comunidade LGBTQIA+ e animais não-humanos (ver CAMPBELL e KUMAR, “Moral Reasoning on the Ground”, Ethics, 2012, p. 274-275).
Uma sugestão seria o meio esportivo apoiar campanhas de conscientização em relação aos estereótipos de gênero e o grave problema da violência doméstica e estupro, defendendo fortemente os direitos das mulheres e, similarmente, apoiar campanhas contra o racismo. E para além disto, poderia ser o caso de apoiar grupos reflexivos de homens em processo judicial que estejam envolvidos em contexto de violência doméstica contra a mulher, que já existem em diversos estados no país, com o objetivo despertar neles uma reflexão sobre sua conduta. Talvez esse tipo de engajamento possa criar um ambiente moral mais saudável e diversificado que influenciará positivamente todos os envolvidos.
Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Pesquisador do CNPq.
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