Celso C. Azambuja
Our most refined theories, our most elaborate descriptions are but crude and barbarous simplifications of a reality that is, in every smallest sample, infinitely complex.
Aldous Huxley
Diante de um quadro civilizacional, de tremendas transformações tecnocientíficas e socioambientais, certamente inquietante e dramático, altamente complexo, a perspectiva da transdisciplinaridade se coloca no horizonte da formação profissional e moral em geral, como forma e método próprios para a abordagem das realidades vividas neste cenário.
A questão da transdisciplinaridade evoca um dos grandes temas epistêmico-metodológicos de nossa atualidade, tão bem falada como mal-entendida, tanto por especialistas acadêmicos quanto pelo público em geral.
Na verdade, e infelizmente, a ignorância é praticamente geral e irrestrita, começando logo pelo lugar onde essa sonora ignorância é mais inaceitável: a universidade. Transdisciplinaridade é uma palavra e principalmente uma prática teórica e de pesquisa que, de fato, se encontra fora da agenda acadêmica. Por medo ou incompreensão, a maioria esmagadora das instituições universitárias simplesmente se encontra de mãos amarradas e se cala. Os cursos e programas de pós-graduação, sua grade maioria, nada ou quase nada fazem para sair de suas monótonas práticas de disciplinaridades – seu reino e sua glória.
Alguns, dentre aqueles que pensam que vale a pena levar em conta esta nova perspectiva, muitas vezes confundem ainda mais os espíritos, pois não distinguem adequadamente os níveis daquilo que Nicolescu chamou de “o arco do conhecimento”. Assim, a multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são tratadas indistintamente como se fossem uma única e mesma coisa. Outros, por outro lado, temerariamente indo ainda mais longe, imaginam que a transdisciplinaridade tem como meta a simples supressão da disciplinaridade a qual, em verdade, é mais uma peça do “arco do conhecimento”.
Assim, as universidades, seus cursos e programas de pós-graduação e sua cultura de pesquisa, continuam com seu feijão com arroz, por suposto fundamental, com suas atividades essencialmente monodisciplinares. Alguns centros diretivos às vezes ousam um passo mais avançado na direção deste novo método, mas como o conjunto subjetivo que forma a massa crítica acadêmica, é altamente disciplinar – conjunto subjetivo composto, evidentemente, por pessoas, instituições, máquinas e sistemas – fica tudo mais ou menos na mesmice de sempre.
Se olharmos com mais atenção, perceberemos a completa ausência de cursos de graduação e programas de pós-graduação de caráter efetivamente transdisciplinar, não apenas no Brasil, mas no mundo. Algumas poucas tentativas de interdisciplinaridade existem, mas com poucas ou quase nenhuma chance de futuro. Não talvez porque não queiram, mas porque, na outra ponta, ou no topo do iceberg encontram-se, de um lado, o Estado disciplinar e, de outro, não menos poderoso, o mercado dos “especialistas” de plantão, com seus territórios de poder muito bem mapeado.
Deste modo, a instituições de ensino subordinadas às lógicas estatais e aos órgãos públicos, de fomento de pesquisa, balizadas por políticas públicas de ensino e pesquisa essencialmente disciplinares são desestimuladas a fomentarem práticas de ensino e pesquisa transdisciplinares. Do lado do mercado, as notícias não são mais animadoras, visto que, em grande parte, as empresas privadas, congelam qualquer perspectiva que se coloque fora de seu quadro produtivo e lucrativo de curto prazo.
A maioria dos projetos de pesquisa de que se tem notícia, em verdade, dificilmente se propõe uma pesquisa transdisciplinar, simplesmente porque não há estruturas institucionais apropriadas para tal. Ficam à margem ou cedem à hegemonia subjetiva, estrutural e institucional, da disciplinaridade. Muitos, com certeza, chegam a construir ideias inovadoras e interessantes em suas respectivas disciplinaridades. Mas um tijolo não faz a casa, se ele não estiver articulado aos demais tijolos.
Assim, a instituição universitária – continua sendo uma boa produtora de quadros para o mercado de trabalho disciplinar – mas seu senso de realidade está muito ofuscado, pois a metodologia e a epistemologia disciplinar não conseguem fazer a leitura da complexidade dos problemas existentes no mundo hoje. A verdade é que a complexidade do mundo e suas questões hoje demandam necessariamente um método e uma epistemologia transdisciplinar de abordagem.
Logo, a instituição universitária precisa urgentemente se reinventar da base à ponta da pirâmide, se ela realmente quiser ser contemporânea de seu próprio tempo. Indubitavelmente, este processo reinvenção passa pela formação transdisciplinar dos profissionais e pela criação de um conceito de aprendizagem adequado às realidades do mundo contemporâneo e seus complexos problemas.
De acordo com Manfred A. Max-Neef (2005) nenhum dos problemas realmente relevantes de nossa época podem ser compreendidos a partir de uma única disciplina:
Se nós passamos por uma lista de algumas das principais problemáticas que estão definindo o novo século, como a água, as migrações forçadas, a pobreza, as crises ambientais, a violência, o terrorismo, o neoimperialismo, a destruição do tecido social, temos de concluir que nenhuma delas podem ser abordadas de forma adequada a partir da esfera de disciplinas específicas individuais. Elas representam claramente desafios transdisciplinares. Isto não deveria representar um problema, desde que a formação recebida por aqueles que passam por instituições de ensino superior, fosse coerente com o desafio. Este, infelizmente, não é o caso, já que a educação uni-disciplinar ainda é amplamente predominante em todas as universidades. [em trad. livre.
Max-Neef, propõe uma interessante leitura da transdisciplinaridade e seus diferentes níveis, mas destaca o nível do valor como dimensão articuladora fundamental da ação transdisciplinar. Na figura abaixo, proposta por Max-Neef, percebemos os diferentes níveis da ação transdisciplinar. Na base, encontramos aquilo que existe. No nível imediatamente superior encontramos aquilo que somos capazes de fazer. Em seguida, no terceiro nível, aquilo que queremos fazer. E finalmente, no último nível, nos deparamos com a questão: o que devemos fazer ou como fazer aquilo que desejamos fazer?
Assim, de acordo com Max-Neef, avançamos de um nível do conhecimento empírico para através do uso desse conhecimento para ações pragmáticas. A partir desse nível avançamos para o nível normativo até chegarmos ao nível do valor.
Neste nível, sobretudo, encontramos um espaço de extraordinária importância na formação acadêmica. É neste espaço que podemos pensar a transdisciplinaridade no processo de formação profissional e na aprendizagem, pois, justamente, é o valor que imprimidos nas ações transdisciplinares que vai definir a direção, justa ou injusta, de suas realizações. Mais do que, a ética e a filosofia, se somam ao esforço da ação transdisciplinar.
Por sua vez, para Basarab Nicolescu (2001), o incomensurável crescimento do conhecimento, um verdadeiro big bang disciplinar em uma situação de ultraespecialização instauradas durante o século XX pressionou a elaboração inicialmente da pluridisciplinaridade, passando pela interdisciplinaridade até chegar a transdisciplinaridade. Única forma de superar a incompetência generalizada instaurada pelas competências especializadas no campo do saber. De acordo com Nicolescu (2001),
Um dos maiores desafios de nossa época, como por exemplo os desafios de ordem ética, exigem competências cada vez maiores. Mas a soma dos melhores especialistas em suas especialidades não consegue senão gerar uma incompetência generalizada, pois a soma das competências não é a competência: no plano técnico, a intercessão entre os diferentes campos do saber é um conjunto vazio. Ora, o que vem a ser um líder, individual ou coletivo, senão aquele que é capaz de levar em conta todos os dados do problema que examina?”
Nicolescu propõe a elabora de uma distinção entre as diferentes formas de superação da ultraespecialização do conhecimento disciplinar. Para ele, a plurisdisciplinaridade, que alguns chamam também de multidisciplinaridade diz respeito a um modo de estudar um objeto em que várias disciplinas são chamadas para sua compreensão. O conhecimento do objeto, assim, é enriquecido pelo olhar intercruzado de várias disciplinas. Por exemplo, um fenômeno histórico pode ser compreendido pelas injunções econômicas, artísticas, filosóficas e políticas da época. Entretanto, aqui, a pesquisa permanece no campo disciplinar, na medida em que cada disciplina enriquece o fenômeno em questão, mas continua inscrita na perspectiva disciplinar. As disciplinas da economia, da arte, da filosofia e da política lançam luzes ao objeto de estudo da história, porém cada uma permanece dentro de seus próprios limites (Nicolescu, 2001).
Por sua vez a interdisciplinaridade é um passo além à pluridisciplinaridade, pois pretende articular de forma mais efetiva uma ou mais disciplinas através de “transferência de métodos” de uma para outra. Basarab distingue “três graus de interdisciplinaridade”. Um que ele chama de aplicação, quando “métodos da física nuclear” são “transferidos para a medicina” proporcionando “novos tratamentos para o câncer”. Depois, ele pensa no “grau epistemológico”, em que “a transferência de métodos da lógica formal para o campo do direito produz análises interessantes na epistemologia do direito”. E finalmente um grau em que são geradas novas disciplinas, tais como a bioengenharia, a astrofísica, a bioinformática etc. Entretanto, ainda que a interdisciplinaridade ultrapasse as disciplinas, “sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar”. E pelo seu último grau, quando gera novas disciplinas, ela também contribui para aumentar o campo de especialização disciplinar (Nicolescu, 2001).
Já a transdisciplinaridade seria uma etapa ainda superior à da interdisciplinaridade, pois, diz Nicolescu (2001), conforme “o prefixo ‘trans’ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento.”
É preciso reconhecer que a transdisciplinaridade não tem especificamente um objeto de estudo, o que, para “o pensamento clássico (...) é um absurdo”. Porém, de acordo com Nicolescu (2001) “para a transdisciplinaridade, por sua vez, o pensamento clássico não é absurdo, mas seu campo de visão é considerado restrito”. Na verdade, disciplinaridade, pluridisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade não se encontram em oposição, mas “são as quatro flechas de um único e mesmo arco: o do conhecimento.” De acordo com Nicolescu (2001):
Como no caso da disciplinaridade, a pesquisa transdisciplinar não é antagonista mais complementar à pesquisa pluri e interdisciplinar. A transdisciplinaridade é, no entanto, radicalmente distinta da pluri e da interdisciplinaridade, por sua finalidade: a compreensão do mundo presente, impossível de ser inscrita na pesquisa disciplinar. A finalidade da pluri e da interdisciplinaridade sempre é a pesquisa disciplinar. Se a transdisciplinaridade é tão frequentemente confundida com a inter e a pluridisciplinaridade (como, aliás, a interdisciplinaridade é tão frequentemente confundida com a pluridisciplinaridade), isto se explica em grande parte pelo fato de que todas as três ultrapassam as disciplinas. Esta confusão é muito prejudicial, na medida em que esconde as diferentes finalidades destas três novas abordagens.
Indispensável, pois, na formação dos profissionais contemporâneos, é desenvolver a compreensão destes quatro níveis do conhecimento, se realmente a universidade contemporânea pretende enfrentar os problemas do mundo humano em nossa cada vez mais complexa realidade presente.
Nesta mesma direção, de acordo com Edgar Morin, as disciplinas não se opõem a transdisciplinaridade necessariamente. Ao contrário, elas estão mesmo justificadas na medida em que reconhecem a necessidade de articulação com outras disciplinas e se se empenham na busca pela compreensão das realidades globais complexas. De acordo com Morin:
As disciplinas são plenamente justificadas intelectualmente desde que mantenham um campo de visão que reconheça e conceba a existência de ligações e solidariedades. Além disso, são totalmente justificadas somente se não escondem as realidades globais. Por exemplo, a noção de homem se encontra fragmentada entre diferentes disciplinas biológicas e todas as disciplinas das ciências humanas: a psique é estudada por um lado, o cérebro, do outro lado, o corpo de um terceiro, os genes, cultura, etc., são realmente múltiplos aspectos de uma realidade complexa, mas só fazem sentido se estiverem ligados a esta realidade, em vez de ignorá-lo. Nós certamente podemos criar uma ciência unificada do homem, que se dissolveria a multiplicidade complexa do que é humano. [em trad. livre]
Essa interconexão e interdependência das diferentes disciplinas é também defendida por Moraes (2008), para quem:
Epistemológica e metodologicamente, o conhecimento transdisciplinar não nega a importância, o sentido e a utilidade do conhecimento disciplinar, pluridisciplinar ou interdisciplinar. Pelo contrário, alimenta-se de todos eles, reconhecendo suas necessidades específicas, importâncias, utilidades e sentidos.
Mas também nos avisa que neles não devemos permanecer e que, como corpus do pensamento, é possível e necessário ir mais além, lançando pontes que religam as partes ao todo e unem as diferenças, sejam elas culturais, sociais, religiosas, sejam de qualquer área do conhecimento e/ou domínio profissional.
Nessa dinâmica de um novo pensamento, orientado para a complexo, deveria emergir uma nova consciência, como ressalta Edgar Morin:
Uma outra consciência, aquela que Piaget chamava o círculo das ciências, que estabelece a interdependência de facto entre as várias ciências, também é necessária. As humanidades lidam com o homem, mas este não é só um ser psicológico e cultural, mas também um ser biológico e as ciências humanas são de alguma forma enraizadas nas ciências biológicas as quais estão enraizadas nas ciências físicas, não sendo nenhuma destas ciências, obviamente, redutível uma a outra. No entanto, as ciências físicas não são o fundamento último e original sobre o qual são construídas todas as outras; essas ciências físicas, por fundamentais que elas sejam, também são ciências humanas no sentido de que eles aparecem na história humana e na sociedade humana. O desenvolvimento do conceito de energia é inseparável da tecnificação e industrialização das sociedades ocidentais no século 19. Assim, em um sentido, tudo é físico, mas, ao mesmo tempo, tudo é humano. O grande problema é, pois, encontrar a maneira difícil de articulação entre as ciências que possuem, cada uma, não só sua linguagem própria, mas conceitos fundamentais que não podem passar de uma linguagem para outra. [em trad. livre]
Assim, apenas nos espaços destas aberturas que permitem o contato de umas disciplinas com outras podemos pensar a verdadeira pesquisa e a verdadeira aprendizagem em nossa época.
Finalmente, o desenvolvimento de uma formação transdisciplinar transformou-se em um imperativo epistemológico e, ao mesmo tempo, moral, um fator verdadeiramente decisivo no contexto da educação contemporânea, na medida em que, indiscutivelmente, somente através de uma perspectiva que articule as diferentes disciplinas que, isoladamente, não conseguem mais responder aos problemas de nosso tempo, em um patamar sistêmico, poderemos fazer face aos complexos problemas do presente.
Se a Universidade e os órgãos de fomento de pesquisa e controle insistirem em uma metodologia e uma epistemologia que faziam sentido séculos atrás corremos o risco de termos uma Universidade, uma pesquisa e um ensino, cada vez mais descolado das realidades vivas e dos grandes e complexos desafios do século 21.
Não é demais insistir para o fato de que isso está custando caro para o país, a sociedade e a civilização, de modo geral.
REFERÊNCIAS
NICOLESCU, . O manifesto da transdisciplinaridade. 2a ed. São Paulo: Triom, 2001.
MAX-NEEF, M. Foundations of transdisciplinarity. (2005) Dsiponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/247855/mod_resource/content/1/Max_Neef_2005_Foundations_of_transdisciplinarity.pdf. Acesso em: 14 out. 2022.
MORAES, M. C. Ecologia dos Saberes: Complexidade, transdisciplinaridade e educação. São Paulo: Antakarana/PróLibera, 2008.
MORIN, E. Sur l'interdisciplinarité (1994). Disponível em: https://ciret-transdisciplinarity.org/bulletin/b2c2.php. Acesso em: 12 Ago. 2020.
Celso C. Azambuja - Doutor. Professor e pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo, RS - Brasil, e-mail: ccandido@unisinos.br.
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