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A democracia não é um conceito relativo, 31/07/2024

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Denis Coitinho

 

Em entrevista a Rádio Gaúcha, em 29 de junho de 2023, ao ser questionado sobre o motivo de setores da esquerda insistirem em defender o regime autocrático de Nicolás Maduro na Venezuela, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva respondeu que a democracia é um conceito “relativo”. Em suas palavras: “A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Eu gosto de democracia, porque a democracia que me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez.”  E, na continuidade falou: “Quem quiser derrotar o Maduro, derrote nas próximas eleições. Agora vai ter eleição. Derrote e assuma o poder. Vamos lá fiscalizar. Se não tiver uma eleição honesta, a gente fala” (O Globo, 26/09/2023).

O motivo de trazer à tona este comentário equivocado do presidente do Brasil é em razão da eleição na Venezuela, que ocorreu no último domingo, dia 28 de julho de 2024, eleição que está sendo contestada tanto pela oposição como por diversos atores internacionais. Passadas seis horas do fechamento das urnas e sem a divulgação de resultados parciais, o CNE - Conselho Nacional Eleitoral - anunciou que Maduro foi reeleito com 51,2% dos votos contra 44,2% de Edmundo González Urrutia. Importante destacar que a proclamação ocorreu com somente 80% das urnas apuradas, mas, segundo o órgão, a vitória governista já era irreversível. Por outro lado, a campanha de González alegou ter tido acesso a 40% das atas e afirmou que elas indicam vitória da oposição com 70% dos votos. Vídeos que circularam em redes sociais, mostravam funcionários de seções eleitorais anunciando os resultados em voz alta, além de imagens de supostas atas, que indicavam ampla vantagem de González. A líder oposicionista Maria Corina Machado, que foi impedida de concorrer nesta eleição, afirmou que os números apresentados pelo CNE são “impossíveis”. Segundo ela, todos sabem que os venezuelanos votaram por uma mudança (Zero Hora, 30/07/2024).

Em termos de atores internacionais, é importante observar que a maioria dos países americanos e europeus contestaram a vitória, como foi o caso dos Estados Unidos, Argentina, Chile, Panamá, Peru, Uruguai, Equador, Costa Rica, República Dominicana, Itália, Espanha, Alemanha, Portugal, Reino Unido e União Européia. Apenas Rússia, China, Cuba, Bolívia, Honduras, Nicarágua, Catar e Irã, reconheceram a vitória de Maduro como presidente da Venezuela.  A OEA – Organização dos Estados Americanos – não reconheceu o resultado das eleições na Venezuela e convocou uma reunião para quarta-feira, dia 31/07/2024, para tratar do tema com urgência. A Organização afirma que ‘vícios, ilegalidades e más práticas’ ocorreram durante o processo eleitoral, enfatizando que Maduro manipulou os resultados e ignorou a vontade do povo (UOL, 30/07/2024).

Sobre essa acusação da OEA, é importante recordar que vários observadores internacionais que iriam acompanhar a eleição foram desconvidados pelo governo Maduro, como foi o caso da retirada do convite à missão da União Europeia e aos representantes do governo de Brasil, Colômbia e Argentina, a exemplo do ocorrido com o ex-presidente Alberto Fernandes, da Argentina (CNN Brasil, 29/07/2024). E além desse fato, pode-se observar um conjunto significativo de manifestações da população Venezuelana que, indignados com o resultado eleitoral, clamam que Maduro entregue o poder e reconheça a vitória da oposição (G1, 30/07/2024).

E o Brasil, como se posicionou? Na contramão dos países da OEA, o Brasil optou por isenção e, embora não tenha endossado as suspeitas de fraudes, tampouco reconheceu o resultado do pleito. Em nota o Itamaraty disse que a apresentação de “dados desagregados por mesa de votação” é “indispensável”. No fim da noite de segunda-feira, 29/07/2024, o governo Maduro expulsou o corpo diplomático de sete países que contestaram a eleição: Argentina, Chile, Costa Rica, Peru, Panamá, República Dominicana e Uruguai (Zero Hora, 30/07/2024). Na terça-feira, dia 30/07/2024, o presidente Lula falou pela primeira vez sobre as eleições na Venezuela, em entrevista à TV Centro América, de Mato Grosso, dizendo estar convencido que não houve nada de anormal, e que briga se resolve apresentando as atas. Inclusive ele comparou a situação em tela com a brasileira, dizendo que na eleição da presidente Dilma para o segundo mandato, o candidato Aécio Neves contestou o resultado das eleições, concluindo que contestação faz parte de uma democracia (CNN Brasil, 30/07/2024).

Em que pese o absurdo da comparação, uma vez que no Brasil houve contestação, é certo, mas as pessoas não saíram às ruas em massa acusando a presidente Dilma de fraude, muito diferente do caso da Venezuela, em que milhares de cidadãos estão protestando nas ruas, e sendo presas e mortas pelas forças policiais e militares da Venezuela, meu objetivo nesse ensaio é tanto defender que a democracia não é um conceito relativo, bem como ponderar que a política externa de um país democrático não pode ser uma opção de governo, mas que deve exprimir uma posição de Estado. Podemos aceitar que um dado partido, ou um líder partidário, pense o que quiser a respeito do valor da democracia, bem como se posicione livremente frente aos seus parceiros internacionais estratégicos. Mas, quando ele está representando o país, ele deveria expressar os valores morais-políticos pátrios e as parcerias internacionais que são uma escolha da população brasileira como um todo e isso mediado por suas instituições, e não expressar unicamente as suas opiniões.

Comecemos com o conceito de democracia. Em primeiro lugar, ele não é apenas um conceito, uma vez que a democracia é o regime político hegemômico no ocidente a partir da modernidade até a atualidade, caracterizando-se, para além do voto universal, o respeito aos direitos humanos, a alternância do poder, e a separação dos poderes. Em segundo lugar, defender que a democracia é um conceito relativo para as pessoas é assumir uma posição claramente instrumental, de forma que ela teria valor apenas como um meio para se obter e se perpetuar no poder. Mas, isso é equivocado, ao se observar o texto constitucional brasileiro ou mesmo os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou aos organismos internacionais dos quais o Brasil é membro, como OEA, Mercosul, entre outros. Nesse contexto, a democracia é tomada em uma perspectiva substancial, partindo do pressuposto que ela assume certos valores morais essenciais, em especial que cada cidadão merece igual consideração e respeito como possuidores de direitos autônomos. Assim, uma constituição é necessária para assegurar que até mesmo leis feitas democraticamente irão aderir a estes valores morais. Essa visão de democracia está amplamente focada no papel e na justificação de uma declaração de Direitos, ou de dispositivos constitucionais que protegem os direitos individuais, sustentada pelo controle de constitucionalidade das leis (DWORKIN, 2006).

Assim, é importante reconhecer que a democracia não pode ser confundida apenas com o governo da maioria, pois ela inclui não apenas o voto e o respeito ao resultado das eleições, mas outros atributos, como a proteção da liberdade, a garantia da discussão ampla e livre de censura e o direito dos cidadãos de reivindicar uma vida humana melhor por meio da participação política (SEN, 2000). Por exemplo, para termos uma democracia não basta termos eleições. Os cidadãos têm que poder expressar livremente sua vontade, bem como as pessoas devem ter o direito de se candidatar, o que não parece ser o caso da Venezuela que prende os opositores ao regime ou mesmo os impede de se candidatarem, bem como expulsa de seu território uma parcela significativa da população. Estima-se que 8 milhões de Venezuelanos já deixaram o país, buscando refúgio em países como Colômbia, Brasil e Estados Unidos, entre outros (FIGUEIREDO, 2024).

Um último ponto sobre o tema, lembrando Bobbio, o de que há uma interdependência da democracia com o Estado liberal. Pensar a democracia como contraposta a todas as formas de governo autocrático é caracterizá-la por um conjunto de regras primárias (ou fundamentais) que estabelece quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos (BOBBIO, 2009). Para Bobbio, a democracia não é necessariamente as “regras do jogo”, isto é, aquilo que determina a base da política interna de um estado em que a maioria do povo escolhe seus governantes, mas está além, sendo o mínimo necessário para que exista uma validade das escolhas feita por um individuo por ordem da coletividade. (BOBBIO, 2009).

Passemos agora para a segunda questão, a de que a política externa em um país democrático deve exprimir uma posição de estado e não ser uma opção de governo. O ponto que quero defender é que não é nada democrático um presidente da República confundir suas opiniões pessoais ou as opiniões de seu partido em relação à política externa com a posição do Estado brasileiro. Essa confusão parece ocorrer porque o Brasil é um país presidencialista, em que o presidente da República é tanto o chefe do governo como chefe de Estado. Em países parlamentaristas ou semipresidencialistas há uma benéfica distinção aqui, sendo que apenas o chefe de Estado é que é o responsável por representar o país ao redor do mundo, sendo o responsável por expressar as posições de Estado.

Alguns exemplos do que estou tomando como problema. O atual presidente do Brasil se posicionou a favor da Venezuela e Nicarágua, países considerados por muitos como ditaduras. Também, desconsiderou o Tribunal Penal Internacional, do qual o Brasil é signatário, e isso para garantir proteção ao Presidente da Rússia, Vladmir Putin, um parceiro na sua avaliação, haja visto o posicionamento fraco em relação à Guerra da Rússia contra Ucrânia, inclusive fazendo uma equivalência de culpabilidade entre os dois países. É claro que se pode entender essa posição pelo histórico dos partidos de esquerda em defender o socialismo, sobretudo União Soviética, China e Cuba, se contrapondo aos países capitalistas, como Estados Unidos e países europeus. E essa posição é legítima. O que não é legítimo é confundir essa posição com a do país como um todo, que claramente repudia as ditaduras, o desrespeito aos direitos humanos e a censura. Veja que isto não é uma exclusividade do atual presidente. Se lembrarmos o posicionamento de Bolsonaro, veremos uma marca similar. Ele, por exemplo, e os seus apoiadores, eram contra o Mercosul, a ONU e a União Europeia, se opondo inclusive a agenda ambiental discutida nas COPs. O ponto que quero ressaltar é que essa era uma posição política legítima da extrema direita contra o globalismo, mas não era uma posição legítima enquanto expressão da política externa brasileira, que tem o compromisso com essas organizações internacionais, bem como está comprometida com agenda ambiental.

Frente a esse problema, a questão agora seria pensar em soluções. Uma solução óbvia seria o reconhecimento por parte dos políticos brasileiros de uma distinção entre políticas de governo e políticas de estado e, assim, o presidente exerceria o poder executivo a partir de suas opiniões, contidas em seu programa partidário, mas exerceria a representação do país a partir dos valores morais-políticos públicos. Creio que um amplo debate nacional sobre essa importante distinção seria de grande valia para a nossa democracia. Outra solução seria adotar um sistema semipresidencialista, como o adotado em Portugal, em que há uma clara distinção de funções entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República. No caso português, o Primeiro-ministro lidera o executivo, sendo o chefe de governo, enquanto o Presidente representa a República portuguesa, sendo o chefe de Estado.

Creio que adotar uma dessas soluções seria fundamental para evitarmos situações embaraçosas, em que, como cidadãos brasileiros, nos envergonhamos de algumas posturas de certos agentes públicos que não estão em sintonia com os compromissos normativos do país como um todo, compromissos esses que estão claramente na carta Constitucional de 1988, bem como na história do próprio país, como os compromissos com a democracia, a liberdade, os direitos individuais e também com a igualdade. Talvez isso também nos ajude a termos mais clareza sobre quais são mesmos os critérios normativos-morais públicos que são centrais para nós enquanto sociedade e qual seria sua hierarquia, e isso para orientar as políticas públicas que poderiam ser tomadas como políticas de Estado e não meramente como políticas de governo.

 

           

Referências

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

 

CNN BRASIL. Veja quem são os observadores da eleição presidencial na Venezuela. CNN Brasil, 29/07/2024.

 

CNN BRASIL. Lula fala pela 1a vez sobre eleições na Venezuela e diz que “briga” se resolve apresentando as atas. CNN Brasil, 30/07/2024.

 

CRAVO, Alice. ‘Conceito de democracia é relativo’, diz Lula ao defender Maduro. O Globo, 26/09/2023.

 

DWORKIN, Ronald. Is Democracy Possible Here? New Jersey: Princeton University Press, 2006.

 

FIGUEIREDO, Janaína. Com 7,7 milhões de cidadãos no exterior, venezuelanos lideram o ranking global de asilados. O Globo, 18/03/2024.

 

PORTAL G1. Governo Maduro expulsa embaixadores e diplomatas de 7 países que contestaram resultado das eleições. G1, 29/07/2024.

 

PORTAL G1. Pelo menos 749 pessoas foram detidas em protestos contra Maduro, na Venezuela, diz procurador-geral. G1, 30/07/2024.

 

SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

 

TAKAHASHI, Luana. OEA não reconhece vitória de Maduro na Venezuela e fala de ‘ilegalidades’. UOL, 30/07/2024.

 

ZERO HORA. Vitória de Maduro é questionada; Brasil evita reconhecer. Zero Hora, 30/07/2024.

 

 

 

 

Denis Coitinho é Eticista. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNISINOS e Pesquisador do CNPq.

 

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